Notícias

A fragilidade dos povos tradicionais diante do desenvolvimento-a-qualquer-custo

13/07/2015

Na semana passada, a notícia de que o Ministério Público Federal fez recomendações a cinco órgãos*para dar mais proteção ao território do Arquipélago do Bailique, no Amapá (veja aqui), funcionou para mim como uma espécie de relógio do tempo.

Como sabem os que me acompanham neste espaço, estive nesse local duas vezes para acompanhar a criação do Protocolo Comunitário do Bailique que tem, entre outras, a preocupação justamente com a regularização fundiária local.

O procurador Thiago Cunha Almeida, este mesmo que está fazendo agora as recomendações, esteve no primeiro Encontrão de todas as comunidades do Bailique, no ano passado (leia aqui), a convite do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), que coordena o processo de elaboração do Protocolo.

Os moradores se revezavam em pedidos ao jovem – à época recém empossado – que saiu de lá, pude constatar, bem interessado em desfazer o imbróglio existente entre União e Estado, já que cada um se considera dono do território formado por oito ilhas e com uma biodiversidade ainda muito abundante.

No Encontrão que aconteceu no mesmo local este ano (leia aqui), Thiago Almeida não pôde ir.Mas no grupo de convidados e futuros parceiros que o presidente do GTA, Rubens Gomes, conseguiu reunir, estavam dois advogados especializados em causas de povos e comunidades tradicionais, já que os moradores do Bailique se autodeclaram uma comunidade tradicional. Tiago Martins e Igor Monteiro, durante toda a viagem, foram tentando me explicar melhor o que as leis podem fazer pelos povos tradicionais.

Assim que saiu a notícia sobre a decisão do MPF, fiz contato com eles e soube que estarão reunidos com o procurador Thiago Almeida no dia 29 deste mês para discutirem também sobre a questão de falta de luz elétrica recorrente no Bailique: “Precisamos resolver essa questão energética. Aquela população fica, às vezes, dois, três dias sem luz. É impossível isso!” disse-me Tiago.

A entrevista com Tiago Martins foi feita no dia 14 de junho, no barco de volta a Macapá, na primeira das quase 14 horas que passaríamos navegando pelo Amazonas.Ainda tenho bem fresco na memória o cenário do entorno, uma natureza abundante de bens, contrastando com as privações que as populações precisam enfrentar para viver ali.

O que vale ser registrado, no entanto, é que aquelas pessoas querem continuar morando no local, mas precisam da ajuda do estado para melhorar suas condições. Abaixo, a íntegra da entrevista:

Quando se ouve falar em povos e comunidades tradicionais, a primeira coisa que se pensa é que são pessoas que vivem com muitas carências. É por aí?
Tiago Martins – Não. São povos que têm um modo peculiar de vida. E quando a gente fala em modo peculiar de vida temos que pensar em dinamismo, em movimento, porque é esse o conceito. É normal achar que são pessoas que moram em casas de madeira, ou o pescador que vive uma vida extremamente simples, ou aquele que vive do que planta, que tem um banheiro no fundo da casa. Mas a forma peculiar de vida é se relacionar com os elementos que o cercam de uma forma diferenciada. E esse conceito – que está acima da Antropologia e da Sociologia --  é que precisa ser apropriado pelas ciências, pelo Direito.

Mas o que esses povos ganham com a apropriação desse conceito pelo Direito?
Tiago Martins
 – É só assim que se consegue fazer a aplicação das leis para efetivar a cidadania desses povos. Eu não posso falar sobre cidadania de povos tradicionais se não conhecer as formas peculiares de vida deles.

Estamos no Arquipélago do Bailique, onde eles cultivam açaí, mel, pescam, usam o rio para se locomover. É dessa relação intrínseca com a natureza que estamos falando?
Tiago Martins – Sim, podemos ver como todas essas cadeias produtivas que você citou interferem na forma de vida deles, na personalidade deles. Fizemos contato, por exemplo, com o Geová Alves, presidente da Associação Comunitária do Bailique, e ele tem na memória afetiva como se divertia quando criança: pegando açaí, pescando... Isso já é uma forma peculiar de vida. A indiana Vandana Shiva, que criou o Banco de Sementes naÍndia, diz que se nós temos que pensar sete gerações à frente, os povos tradicionais precisam pensar em 70 gerações à frente. Porque, para eles, está tudo aqui. Será que os netos do Geová vão ter açaí para colher quando crianças?

Bem, vamos imaginar que o açaí se esgote. Eles vão ter que descobrir outro alimento e não podem ficar dependendo de “terceiros” que venham ensiná-los a fazer isso porque, é claro, essa “capacitação” não será de graça...
Tiago Martins – Foi isso o que eu quis dizer no início da nossa conversa, quando falei sobre dinamismo. A forma peculiar de vida é dinâmica e não podemos permitir que esses povos percam sua capacidade de resiliência. Essas pessoas têm condições de substituir um recurso quando ele acaba. Só que se eles ficarem fragilizados e não conseguirem mais prospectar nada, vai acontecer como aconteceu com um grupo de quilombolas do Pará. As comunidades se esvaziaram, cada um foi buscar uma forma de vida em outro lugar. Ficou um campo aberto para quem quer utilizar os recursos naturais a seu bel prazer.

Qual é a maior questão?
Tiago Martins – Os ribeirinhos, os povos tradicionais, são encarados como entraves para o desenvolvimento a qualquer custo que empresários gananciosos querem imprimir como costume. Eles não propõem parceria, querem que essas pessoas sejam seus empregados, o que as fragiliza.  E não se incomodam com a devastação dos bens naturais.

Você acredita que possa haver uma mudança nesse tipo de atitude?
Tiago Martins – Acredito sim. Assim como os povos tradicionais têm essa capacidade de adaptação, as empresas também têm. O mundo corporativo vai acabar mudando, vai entender que é um erro achar, por exemplo, que o único conhecimento que vale é aquele que se consegue nas escolas. O que é construído no mata, nas periferias das cidades, que o sociólogo e professor Boaventura dos Santos chama de senso comum, é válido e deve ser levado em conta pelas empresas, elas vão entender isso mais cedo ou mais tarde. Gosto de uma frase dele que diz: “Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.

Por que você decidiu oferecer seus serviços gratuitamente para essas comunidades do Bailique?
Tiago Martins – Muitos encaram como caridade, mas não é isso. Sou um pesquisador, tenho aqui um campo de pesquisa enorme, é natural que eu ofereça algo em troca. É um ganha-ganha. Meus alunos me chamam de utópico, e eu acho que sou mesmo porque não vejo utopia como algo impossível de se atingir, mas como algo que nunca se deixa de buscar. Meu retorno para as comunidades bailiquenses será no documentário que estou fazendo aqui e que farei circular entre acadêmicos, na cobrança que farei chegar às instituições públicas. A questão da energia, por exemplo, não pode continuar assim... às vezes eles ficam dias sem luz, e isso atrapalha muito a ter condições mais dignas de vida.

Nessa sua busca, você já se deparou com situações complexas, com certeza. Conte-me um caso que o afetou muito?
Tiago Martins – Era agosto de 2013, eu estava trabalhando com quilombolas de uma comunidade do Marajó num município chamado Cachoeiras do Arari. Havia uma questão com um empresário que estava sendo expulso do local e um dos quilombolas, que se tornou meu amigo, disse-me que queria fazer denúnciase fez. Lembro-me bem de uma frase dele no fim do depoimento: “Será que o quilombola nasceu para sofrer?”. Uma semana depois ele foi assassinado em Belém e foi feito um inquérito policial ligeiro, que terminou em 30 dias e definiu a morte como “crime passional”. Ele era um homem quieto, pouco mais de 60 anos, nem beber, ele bebia. Para mim é claro que não foi isso.

*Os órgãos que estão recebendo a primeira recomendação do Ministério Público Federal (vale como uma reprimenda) são: Incra, ICMBio, Sema, Imap e SPU. Se dentro de um prazo determinado eles não apresentarem ações que possam ser adotadas para regularizar aquelas terras, a reprimenda  poderá virar uma ação civil pública.

Fonte: g1.com